(21.dez) Vamos conhecer a ilha. Na vila as ruas são de pura areia fininha como talco. Até para andar de sandália é ruim, é melhor andar descalço, pelo menos até ela não esquentar.
Dá prá ver o mar lá no fundinho.
De qualquer lugar da vila vê-se sempre a presença marcante das dunas que a cercam e ameaçam.
Em alguns cantos fica bem patente a ação do vento ameaçando enterrar as casas. Estes aí breve terão que mudar suas casas de lugar.
Vejam só o que está acontecendo com a escola. Como é de alvenaria ela logo ficará soterrada. E olha que só faziam três dias que eles tinham limpado esta areia.
A ameaça de ser encobertos pelas dunas é uma constante. O dono desta casa, que ainda está nos finalmentes da construção, já perdeu duas casas para a areia.
O vento é complicado e caprichoso: bota areia em uns cantos e leva de outros - as casas então devem ser construídas sobre “palafitas”. Veja só nesta aí, o vento deixou-a “no ar”.
Existem inúmeras cacimbas na vila. Na maioria se puxa a água com baldes, mas há as motorizadas como esta, toda chiquitosa!
Porém, como não há fossas sépticas e, portanto, há grande risco de contaminação do lençol (freático), eles pegam a água de beber e cozinhar em cacimbas mais afastadas, situadas no sopé das dunas. Foi por uma destas cacimbas que meu tour começou.
Se quem cai na chuva é prá se molhar – quem vai “turistar” em regiões de dunas é prá “se ferrar”. Vamos começar a subida antes que o sol esquente muito.
E tome duna. Perceba a formação do tipo “dunas-sobre-dunas” – será um fractal? Gaudí faria melhor? As ondulações das dunas criam ilusões de ótica em razão dos desenhos intricados e infinitos e das variações sutis das cores branca, creme e cinza e do rendado das areias alí de prata fina, como diria Camões. A duna mais alta chama-se Camocim e tem mais de 50m de altura.
E vai subindo, e vai subindo. A Vila dos Lençóis lá embaixo diminuindo, diminuindo ...
Pela vista, até que compensa. Se subir mais a Vila desaparece (eu também)!
Bate-Vento lá loooonge. Tem centenas de bancos de areia. Durante a maré baixa há sempre o risco de encalhe. Para economizar combustível e agilizar eles normalmente saem de Apicum-Açú para cá quando a maré está vazando, e só partem de volta com a maré enchendo, assim pegam “carona” na correnteza da maré.
Olhando para o outro lado vemos a boca do canal por onde entramos de barco.
Como tudo que sobe tem que descer, voltamos à praia – meu Deus, vou ter que andar tudo isso? Como são bem planas e a amplitude das marés são bem altas (aqui dá mais de 6m), as praias ficam super largas. Ela é bem deserta, dá prá tomar banho pelado.
Dá prá ver uma vaquinhas ao longe? Estas são criadas soltas na mata e ficam bem ariscas. Não deixam ninguém chegar perto delas. Quando querem pegá-las dá um trabalhão. Em breve será época de vacinação e eles levarão dias para prende-las. Eles saem de madrugada para tentar pegá-las ainda dormindo. Tudo a pé, não há cavalos na ilha.
Para embelezar o caminho, e aumentar minha saudade, tinha até uma flor no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma flor. Será que é para me lembrar com saudade daquela que me dá carinho, ou para me lembrar com carinho daquela que me dá saudade?
Ufa, chegando ao destino final! – Pontal do Gino.
Destino final? Uma vírgula! Pode ser que seja o fim do caminho, mas claro que temos que voltar tudinho a pé, e desta vez contra um vento quase patagônico (firme, constante e forte) ... eu quero minha mãe!!!! Na Vila não descobriram a roda como meio de transporte – não tem carro (é proibido), nem moto (graças ao bom Deus), nem bike, nem carroça. Só tem um casal de jumentos que não sei ainda para que servem – por enquanto parece que só ficam namorando e fazendo o “abominável”. No pontal os pescadores também constroem abrigos para as “expedições” ou “vigílias” de pesca, com estrados elevados do chão.
Nunca ví tanto cachorro junto na minha vida, tinha uns duzentos ... tá bom, menos ... uns cem ... Ok, menos de vinte não eram! Na volta passamos por um casal de ilhéus que corriam atrás de cabras para tirá-las dos bancos de areia. Como os bancos são muito, mas muito extensos, algumas vezes elas vão para os bancos e não percebem a maré enchendo. Agora me digam que diabos elas vão fazer lá se neles não tem capim - será que vão se bronzear para ficar gostosonas para os bodes? Ou serão cabras com juízo de jumento? – “Ema, ema, ema, cada quá com seu pobrema!”.
Após toda esta longa jornada tomamos, no primeiro bar, dois litros de coca-cola. Inn-onn-inn-onn
Ilhatour também é cultura:
Pedi emprestado um livro muito interessante no Memorial do Rei Sebastião – “O Touro Encantado da Ilha dos Lençóis – O Sebastianismo no Maranhão” de Pedro Braga – Editora Vozes. Pedro é um português formado em sociologia na Sorbonne e em jornalismo pela Paris III. Com tanto academicismo ele não pode escapar de uma linguagem um pouco rebuscada mas, em compensação, faz um levantamento geral e meticuloso dos assuntos ligados ao fenômeno, desde as professias que motivaram Dom Sebastião à sua aventura maluca, à disseminação do sebastianismo no Brasil. Cita as “Sibilïnas Cristãs”que, já no século IV, pregava que haveria “um rei cristão que, a partir de Jerusalém, unificaria sob seu império todo o mundo habitado.”
Os Livros Sibilinos são uma compilação de declarações do oráculo comprados da Sibila de Cumas por Tarquínio, o Soberbo ( último rei de Roma - reinou de 535 a.C. a 509 a.C).
Reza que Sibila (profetisa) quis vender ao imperador nove livros que continham todo o conhecimento do futuro. Ele achou alto o preço, e não quis comprar. Ela queimou três, voltou com os restantes e pediu o mesmo preço. Ele recusou, e ela queimou mais três. Voltando com os últimos, pediu, novamente, o mesmo preço. Intrigado, o imperador comprou os livros, e, ao examiná-los, lamentou todo o conhecimento irremediavelmente perdido.
Em 1520 frei Pedro de Frias coloca em versos as professias de Santo Isidoro (de Sevilha) onde alude a “um rey que non se descubre”, vindo daí o termo “el encubierrto” que é uma das designações de Dom Sebastião.
Entre 1530 e 1540 disseminaram-se as trovas do sapateiro Antonio Gonçalo Annes, cognominado Bandarra que narrava um rei que reinará sobre os outros. As Trovas do Bandarra influenciaram o pensamento sebastianista e messiánico de Padre António Vieira e de Fernando Pessoa.
Naquela época eram recorrentes as referências às Professias de Davi, Isaías e Daniel (Daniel – 2, 31-45), onde Daniel interpreta um sonho de Nabucodonosor sobre uma estátua feita de quatro materiais diferentes e que era destruída por uma pedra que rola montanha abaixo. A interpretação é que cada material representava um reino diferente: a cabeça de ouro representava os assírios; o peito de prata, os gregos; o ventre de bronze, os gregos; e as demais partes de ferro, os romanos. A pedra é o quinto e último reino que sucederá todos eles e dominará o mundo.
Dom Sebastião era filho de Dom João Manoel e de Joana de Áustria, irmã de Filipe II Rei de Castela. Foi educado por Jesuítas, portanto deve ter tido uma educação muito severa e eivada destas profecias. Herdou o trono com apenas três anos – seu pai morreu semanas antes dele nascer. Aos 14 anos assumiu a governação manifestando grande fervor religioso e militar.
Solicitado a cessar as ameaças às costas portuguesas e motivado a reviver as glórias do passado, decidiu a montar um esforço militar em Marrocos, planejando uma cruzada após Mulei Mohammed ter solicitar sua ajuda para recuperar o trono, oferecendo a cidade de Arzila como pagamento. Dom Sebastião, apesar dos conselhos contrários, resolveu empreender esta empreitada com cerca de 17.000 soldados. Preparou-se para a guerra criando impostos e arrochando os judeus. O sultão tinha mais de 40.000 soldados. No campo de batalha os soldados portugueses recuaram mas o Rei avançou sendo morto juntamente com boa parte do seu exército. Os vencedores dizem que entregaram seu corpo aos portugueses, mas, quando Filipe II reivindicou o trono de Portugal a lenda de um Rei que voltaria para libertar Portugal tornou-se politicamente interessante. Assim o Sebastianismo tem, em Portugal daquela época, um cunho político – Dom Sebastião, o libertador - e, no resto do mundo, um cunho messiânico. Vários se encarregaram de espalhar esta lenda do retorno, incluindo nomes célebres como
Fernando Pessoa:
“Aqui, onde há só sargaço,
Surge uma ilha velada,
O país afortunado,
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada.”
Padre Antonio Vieira é um dos principais arautos do Quinto Reino.
Antonio Conselheiro usa a lenda: “o sertão vai virar praia e a praia vai virar sertão ... e das ondas do mar Dom Sebastião sairá com todo seu exercito”.
O Tambor de Mina da ilha evoca Dom Sebastião. Faz referências ao boi da lenda, colocando-o como divindade no panteon Vodum:
“Em cima daquele morro
Eu ví uma estrela ‘brilhá’
Era o sinal de meu pai
Légua-Bojí, Bojí-Buá”
Gostaria de voltar à Ilha para assistir um Tambor de Mina e dormir sobre as dunas numa noite de lua cheia. quem sabe meu Rei apareceria na forma de touro negro soltando fogo pelas ventas?
Ou a imagem do touro seria essa?
Brincadeirinha, aproveitei a ocasião para mostrar esta belíssima estátua "O rapto de europa" plantada em uma minúscula pracinha em Punta del Este, no Uruguay. Como todas as estórias da mitologia grega, esta também é bastante criativa:
"La magnífica escultura fue hecha en bronce por Oscar Alvariño, en Madrid, España, en 1962.
He aquí quien fue esta hermosa joven…
La leyenda cuenta que Zeus se había enamorado de la princesa Europa y decidió seducirla a toda costa. Entonces, él, rey del Olimpo, padre de los dioses, adoptó la apariencia de un toro y se mezcló con la tropilla de su padre. Un buen día, la bella princesa Europa y su corte recogían flores a orillas de la playa y de golpe descubre al animal y lo comenzó a acariciar. Como la bestia era dócil, Europa se entusiasmó y decidió montarla. Entonces, Zeus aprovechó la ocasión para correr hacia el agua y escapar nadando, raptando así a la doncella. Nadaron hacia la Isla de Creta. En un momento dado, Zeus reveló su verdadera identidad. Recuperó su forma humana y la princesa al verlo, se enamoró ella también de la divinidad. Europa se volvió así la primera reina de Creta."
Voltemos à nossa Ilha. Não se pode levar nada dela – Dom Sebastião não deixa. O barco afundará se algum passageiro estiver transportando alguma coisa escondida.
O memorial do Rei Sebastião louva às mães de santo e as contadoras de estórias da ilha. Deve ser muito bom ouví-las. Jorge Dino recomendou uma roda com fogueira, muita cachaça e um tocador de pandeiro (o Xengo), mas o tempo não deu.
A estrela dourada na testa do boi é, na fé judáica, um símbolo que refere-se à vinda de um messias.
No Brasil o principal divulgador foram, sem dúvida, os Jesuitas. Quando o Marquês de Pombal expulsou os Jesuítas do Brasil nem todos conseguiram voltar para Portugal e se embrenharam em locais ermos – Santo Amaro do Maranhão foi um destes lugares. Será que alguns Jesuítas se esconderam na Ilha dos Lençóis e implantaram esta lenda por lá?
Ou teriam sido as famílias portuguesas importadas especialmente para fundar Belém e arredores? Eis mais um mistério da nossa Ilha encantada.
Estórias de cunho messiânico espalham-se facilmente pois populações que encontram-se em estado de miséria extrema recorrem ao imaginário para aliviar as frustações que a realidade lhes impõe. O sonho-de-olhos-abertos, o fantástico, realiza uma catarse coletiva amainando as tensões à medida que oferece esperança ilusória de uma época que há de vir, de opulência e felicidade. A utopia se opõe ao mal e serve para mascará-lo. O fato de induzir a uma espera pacífica por dias melhores deve, de sobremaneira, interessar às classes dominantes: é só esperar mansos como cordeirinhos que o milagre acontecerá.